Assim que se alardeia o início de uma crise econômica, é natural ouvir que as empresas sofrerão dificuldades para manter seu nível de atividade e esperar um aumento no número de recuperações judiciais. O prelúdio de um pedido de recuperação costuma ser o endividamento das empresas com bancos, em função de empréstimos contratados para financiar planos de expansão das empresas ou despesas corriqueiras da atividade empresarial.
O que muitas vezes os empresários não levam em consideração são as consequências que as recuperações judiciais costumam representar para os sócios das pessoas jurídicas, especialmente as de médio porte.
Este artigo tem como objetivo apresentar interpretação que julgamos razoável acerca de uma importante consequência da aprovação do plano de recuperação judicial para os devedores solidários ou coobrigados.
Seguir o posicionamento do STJ implicaria admitir que a aprovação do plano tem o condão de transformar a dívida original em duas dívidas.
A relevância do tema decorre de duas características dos contratos bancários tipicamente celebrados com instituições financeiras operando no Brasil. A primeira destas características é a cláusula que estabelece a rescisão automática destes contratos caso se verifique que a empresa pediu uma recuperação judicial. A segunda é a típica exigência de que os sócios, em especial os majoritários, assinem os contratos como garantidores ou devedores solidários. Trata-se da constituição de uma garantia pessoal que é, em geral, uma das condições de contratação exigidas pelos bancos para a liberação dos financiamentos.
As consequências dessas duas cláusulas para a empresa recuperanda são reguladas pela Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei 11.101/2005 ou LRJF), que garantiu às empresas, expressamente, a suspensão de todas as ações e execuções ajuizadas contra ela (art. 6º) e estabeleceu a novação dos créditos anteriores ao pedido quando da aprovação do plano de recuperação judicial (art. 59). Ou seja, os processos judiciais são suspensos e a dívida antiga é trocada por uma nova,
geralmente de valor inferior à original, conforme o deságio negociado e aprovado no plano.
No entanto, a Lei nº 11.101/2005 não concedeu o mesmo benefício aos garantidores dos contratos bancários. Contra terceiros devedores solidários e coobrigados, o entendimento jurisprudencial é o de que as ações e as execuções podem tramitar normalmente e que não lhes é aplicável a novação a que se refere o art. 59, caput da Lei 11.101/05 (conforme REsp 1.333.349, julgado sob o regime de recursos repetitivos em 02/02/2015 pelo STJ).
Seguir textualmente o posicionamento do STJ implicaria admitir, em alguma medida, que a aprovação do plano de recuperação judicial tem o condão de transformar a dívida original em duas dívidas diferentes: uma para o devedor principal e outra para os coobrigados. Afinal, a dívida seria novada para o devedor principal, mas continuaria valendo para o garantidor ou devedor solidário.
Não nos parece que esta seja a melhor interpretação do posicionamento do STJ. Com efeito, parece-nos necessário conciliar a orientação do STJ com o princípio de que o acessório segue o principal e evitar a situação juridicamente inadmissível de converter uma dívida em duas, reguladas diferentemente.
Em linha com este objetivo, parece-nos necessário reconhecer a peculiaridade da novação prevista da LRJF. Trata-se de uma novação realizada sob condição suspensiva de cumprimento do plano de recuperação judicial. É dizer, em outras palavras, que caso o plano seja descumprido, a novação operada quando de sua aprovação será automaticamente desfeita.
Este entendimento permite-nos operacionalizar duas consequências alinhadas com os objetivos da LRJF: por um lado, assegurar que os créditos continuem sendo garantidos enquanto durar a recuperação judicial; por outro, a quitação da dívida novada, aperfeiçoada pelo sucesso da recuperação judicial, deve acarretar a extinção das garantias acessórias.
Em termos práticos, este entendimento traria pelo menos três consequências para o trâmite das execuções contra os garantidores das dívidas da empresa em recuperação judicial: (i) as execuções já ajuizadas contra coobrigados não são suspensas ou extintas; (ii) é possível penhorar bens dos coobrigados até o limite do crédito original (sem o deságio do plano de recuperação), pois a novação é condicional e caso o plano não seja cumprido, restaura-se a dívida original, e; (iii)
enquanto estiver em vigor o plano, não é possível transferir a propriedade dos bens aos credores no valor total da dívida, pois caso o plano venha a ser cumprido, a novação se aperfeiçoa e a dívida se dará por integralmente quitada, devendo o excesso penhorado ser devolvido aos coobrigados;
Parece-nos que as três consequências identificadas anteriormente, permitem atingir o intuito da lei de preservar os créditos em face dos coobrigados, respeitando o enunciado do STJ, e sem incorrer no absurdo jurídico de se considerar que há duas dívidas distintas vigentes ao mesmo tempo.
Há dúvida, entretanto, acerca da possibilidade de transferir qualquer parte dos bens dos coobrigados que tenham sido penhorados no curso da execução, questão que precisará ser analisada em profundidade oportunamente. Espera-se que a implementação do enunciado do STJ seja feita com sensibilidade às questões aqui levantadas, evitando que empresários, já em dificuldades pelos árduos tempos de crise, sofram as graves consequências de uma aplicação irrefletida da legislação e jurisprudência.
Daniel Tavela Luis e Victor Nóbrega Luccas
Daniel Tavela Luís e Victor Nóbrega Luccas são sócios de Manuel Luís Advogados Associados e, respectivamente, mestre e doutorando em direito internacional pela Faculdade de Direito da USP; mestre e doutorando em filosofia do direito pela Faculdade de Direito da USP.
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