Como soa a ideia de o Brasil se tornar um importante centro de litigância e arbitragem na América Latina e na comunidade dos países de língua portuguesa? Dentre as alterações nas regras de jurisdição internacional que ganharão eficácia em menos de um ano está uma previsão legal que pode ajudar a construir essa realidade: a possibilidade de estender a competência dos juízes e tribunais brasileiros a casos que não guardam conexão material com o país, bastando, pura e simplesmente, a aceitação do juízo brasileiro.
O artigo 88 do Código de Processo Civil (Lei nº 5.869/1973) prevê que a autoridade judiciária brasileira apenas será competente para processar e julgar ações quando (i) o réu estiver domiciliado no Brasil; (ii) a obrigação tiver de ser cumprida no Brasil, ou; (iii) a ação se originar de fato ocorrido ou ato praticado no Brasil.
O novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) manteve essa mesma regra em seu artigo 21, porém, em seu artigo 22, trouxe algumas ampliações, em particular a do inciso III, o qual dá à autoridade judiciária brasileira competência para processar e julgar as ações “em que partes, expressa ou tacitamente, se submeterem à jurisdição nacional”.
Passa a ser possível a oferta de serviços de litigância no Brasil, mesmo para relações sem qualquer conexão material com o foro
Essa disposição inova o ordenamento jurídico brasileiro, reconhecendo a autonomia da vontade das partes como atributiva de jurisdição ao juiz brasileiro, seja mediante cláusula contratual de eleição de foro, acordo para essa finalidade específica ou, simplesmente, o assentimento tácito, como o dado pelo réu que apresenta defesa sem excepcionar o juízo em razão da incompetência.
A regra é importante e muito bem-vinda, quando se tem em mente o fortalecimento do Brasil como líder regional. Explica-se. Atualmente, é prática do comércio internacional as chamadas cláusulas de escolha de jurisdição. Essas são cláusulas por meio das quais as partes escolhem quais Cortes serão as responsáveis pelo julgamento de um litígio que, eventualmente, venha a surgir entre elas.
No comércio internacional, especialmente no comércio de commodities (principal item da pauta de exportação brasileira), é bastante comum que esta escolha seja feita pelas partes, atribuindo jurisdição às Cortes inglesas ou mesmo às Cortes novaiorquinas que, ao longo de muitos anos, consolidaram sua posição como líderes mundiais de resolução de conflitos para determinados setores econômicos.
A inovação trazida pelo novo CPC permite ao Brasil se projetar como uma destas jurisdições para o futuro. Em razão de custos e facilidades linguísticas, bem como enquanto alternativa às Cortes de common law, passa a ser possível a oferta de serviços de litigância no Brasil, mesmo para relações sem qualquer conexão material com o foro. Litigantes de países latino-americanos e lusófonos, sobretudo os africanos, podem se sentir tentados a buscar soluções a seus litígios em foros brasileiros e utilizando a advocacia brasileira.
Apesar de tantos problemas que assolam o Judiciário brasileiro, a morosidade sendo, talvez, o principal deles, pode-se vislumbrar algumas vantagens: a ausência de viés nacionalista, a utilização do processo digital (que, diga-se de passagem, tem permitido maior agilidade no trâmite cotidiano do processo) e o alto grau de transparência do processo brasileiro, sendo, talvez, as principais. Deve-se, ainda, adicionar a essas características o uso do idioma português, que é extremamente interessante, especialmente para os litigantes lusófonos, que ganham uma alternativa às tradicionais Cortes de common law, todas que utilizam o idioma inglês como natural.
Além disso, a modernização do processo civil brasileiro no sentido de se internacionalizar, conforme permitido pelo novo CPC, certamente poderia ajudar o Brasil a se desenvolver ainda mais como uma jurisdição de apoio à arbitragem internacional. Segundo dados da Corte de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional, nos últimos anos, o Brasil tem figurado entre os quatro países com maior número de partes litigantes em procedimentos arbitrais administrados pela CCI, no entanto, esta participação não é acompanhada da utilização de Cortes brasileiras como Cortes de apoio a esses procedimentos arbitrais.
Assim, vislumbra-se nas disposições do novo CPC uma possibilidade de internacionalizar o Judiciário e a advocacia brasileiros e projetar o Brasil como uma liderança regional em resolução de conflitos seja por meio de arbitragem ou da utilização de Cortes estatais. É de se acompanhar atentamente, como as Cortes brasileiras vão entender e aceitar a nova e bem-vinda disposição processual civil.
Daniel Tavela Luís e José Augusto Fontoura Costa
Daniel Tavela Luís e José Augusto Fontoura Costa são, respectivamente, sócio de Manuel Luís Advogados Associados, mestre e doutorando em direito internacional pela Faculdade de Direito da USP; e professor da Faculdade de Direito da USP.
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